sábado, 12 de maio de 2012

Mudança Sem Endereço

Todo mundo sabe que a vida do diplomata é cheia de mudanças. Para o diplomata brasileiro de hoje, essas mudanças não são sempre fáceis. Espera-se que, ao longo da carreira, o sujeito passe por lugares bem mais exóticos – e muitas vezes mais difíceis – que Paris, Londres ou Nova York. No meu caso, a largada foi dada em Harare, uma cidade bem menos caótica do que a mídia internacional faz parecer, mas ainda assim bem diferente do Brasil e com muitos problemas estruturais.
Acontece que a dificuldade da mudança vai muito além da simples adaptação a um país novo. Existem também os problemas cotidianos do deslocamento, da escolha de uma casa e do começo de uma vida nova – porque, na prática, é isso que acontece. Especialmente no caso da primeira remoção, todas essas dificuldades são potencializadas pelo desconhecimento dos procedimentos-padrão da diplomacia. Ao chegar ao meu primeiro posto, percebi que há muito mais entre Brasília e Harare do que supõe a vã geografia.
A primeira dificuldade que encontrei foi na busca do meu novo lar. Ao partir para um posto D (classificação do MRE para as cidades que apresentam maiores dificuldades) o diplomata é informado de que o Itamaraty disponibiliza um valor mensal para o aluguel de uma casa. O que ninguém explica é que encontrar uma boa casa pode depender de muito mais do que a simples disponibilidade de recursos. No meu caso, a tarefa se transformou numa verdadeira epopeia!
Aqui em Harare, o problema começou com o período dos contratos. Por alguma razão bizarra, 90% dos aluguéis começam entre junho e agosto ou entre dezembro e janeiro. Quem chega à cidade fora dessas épocas não encontra bons imóveis disponíveis. Além disso, alguns costumes locais são um tanto estranhos. Fui visitar uma casa, por exemplo, que divide o terreno com outra casa, onde vive o proprietário de ambas. As construções são espaçosas e luxuosas, mas têm um quintal comum, onde moram quatro simpáticos boxers. Ou seja, além de poder dar de cara com um senhor praticando ioga de cueca pela manhã, o futuro inquilino precisará aceitar conviver com quatro cães gigantes, que não aprenderam a respeitar os limites artificiais entre as duas propriedades.
O problema do aluguel, no meu caso, foi um pouco menor do que poderia ser. Como vim para Harare sozinho e me hospedei num bom hotel assim que cheguei, nunca tive pressa para achar uma casa definitiva. Acontece que não é assim com todo mundo. Muita gente, ao chegar num posto D, fica hospedado na residência oficial (onde mora o embaixador) ou na casa de algum colega. Quando é assim, a pressa para alugar um espaço próprio é muito maior, e aí a coisa pode se complicar.
E, graças à falta de pressa, encontrei finalmente uma casa satisfatória. Como era de se esperar, ela só ficará vaga em junho, e até lá continuarei acampando no glorioso Woodlands Lodge, de onde escrevo este texto. Mesmo assim, acho que vai valer a pena esperar. Meu novo lar – onde atualmente reside o encarregado de negócios da Rússia – é bem espaçoso pra uma pessoa só, tem uma piscininha e uma quadra de tênis e fica relativamente perto da embaixada.
Um problema a menos, e vários ainda por resolver. Carro, documentos, dinheiro e conta em banco são alguns dos muitos assuntos que ainda terei de enfrentar. Não faltarão temas triviais para rechear os próximos posts.

terça-feira, 1 de maio de 2012

A vida aqui fora


Enfim cheguei! Estou em Harare há uma semana e a primeira impressão da cidade foi boa. Moro temporariamente em um hotel, no bairro de Borrowdale (o mesmo da embaixada brasileira), um subúrbio muito arborizado e relativamente bem organizado. Não posso reclamar do que encontrei, tratando-se de um posto considerado difícil.
O que mais me chamou a atenção aqui foram as opções gastronômicas. Moro perto de um lugar chamado Sam Levy’s, uma espécie de shopping center a céu aberto com pelo menos três restaurantes muito bons para o dia a dia. De acordo com os meus colegas de embaixada, também existem opções mais sofisticadas igualmente apreciáveis pela cidade. Pra quem gosta de carne, a cozinha zimbabuense é um prato cheio. Literalmente!
Outra surpresa agradável foi o abastecimento - as opções para compras, mais especificamente. Os supermercados oferecem todos os produtos mais essenciais e até de alguns itens mais sofisticados – estes mais esporadicamente. A falta de combustível já não é um problema em Harare, mesmo para os muitos automóveis antigos e beberrões que circulam por aqui.
Isso não significa que o país não tenha lá seus problemas. A falta de energia é crônica e os cortes de luz ocorrem quase diariamente. As pessoas mais abastadas contam com geradores privados e sequer sentem o problema, mas para a população comum os “power cuts” atrapalham muito. Acontece a mesma coisa com a água. Especialmente no inverno, época seca, o abastecimento público fica muito irregular. Os ricos têm poços privados e tanques de armazenamento, mas os pobres dependem completamente da água da rua, o que torna os meses secos especialmente complicados.
Bom, por enquanto é isso. Ainda não pude explorar muito a cidade por falta de automóvel próprio, mas isso deve ser solucionado em breve. Nos próximos capítulos, a saga da busca por um carro e por uma casa no Zimbábue.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Encaixotado

- Péééé, péééé
8h da manhã. Em vez de ser acordado por uma música do Chico, como quase todos os dias, fui sacudido da cama pelo som agudo da campainha de casa. Eram os empacotadores da Botafogo Transportes, que vieram encaixotar parte da minha vida.
Depois de meses esperando a hora de partir, a manhã de hoje trouxe a realidade à minha porta. Enquanto os funcionários da empresa de mudança embalavam meus livros, minha TV, meu vídeo-game e as muitas cachaças que levarei comigo, a hora do embarque parecia cada vez mais próxima.
É engraçado como algumas coisas na vida só parecem se transformar em realidade em momentos simbólicos, e a manhã de hoje foi cheia deles.
Assim que saí da cama, D. Maria, nossa faxineira, me perguntou entristecida: “você está de mudança?”. Eu respondi de forma relutante, com um “ainda tenho algum tempo por aqui”, mas de fato estou me mudando. Depois de forçar uma continha no meu intelecto matematicamente deficiente, me dei conta de que hoje, dia 12/04, estou a apenas 12 dias de me despedir do Brasil por um bom tempo.



Outro evento interessante da manhã de hoje foi a interação com os botafoguenses. Enquanto embalava a mudança, um dos empacotadores me perguntou, “vai pra longe, né?”, ao que eu respondi com um singelo “é...”. Terminado o serviço, o pessoal foi embora e me deixou cercado de caixas por todos os lados. Fiquei algumas horas sufocado por esse cenário, até que o caminhão chegou, os funcionários enfiaram tudo num contêiner e o motorista partiu, não sem antes me desejar uma “boa viagem”.
Este dia foi repleto, enfim, de momentos que marcarão minha vida e minha carreira. Não tenho mais casa, já que meus pertences estão todos em trânsito, quase não tenho mais tempo, e o pouco que resta vai ser gasto em despedidas.
“Eu acho que uma reflexão sobre a sensação de ver pessoas empacotando suas coisas pra mudança daria um ótimo post”, alguém me disse. De fato, a sensação é estranha e tenho uma longa estrada até me acostumar com ela, mas ver minhas coisas partindo só me fez perceber uma coisa: duro mesmo é deixar pra trás o que fica.

quinta-feira, 15 de março de 2012

A Bela e a Fera

A democracia é um engodo! Essa afirmação se encaixa de forma especialmente azeitada na democracia liberal, que engoliu o Ocidente – que nunca deixou de existir, apesar da insistência dos ocidentais. De forma resumida, o engodo se dá pela criação de uma ilusão coletiva: transfere-se a responsabilidade do público para o privado, da sociedade para o indivíduo. Na democracia, os desmandos do Estado são personificados. Pensa-se a mudança sempre no nível micro.
Quando se vive sob uma “ditadura” (com toda a gama de regimes que essa palavrinha denota) mal sucedida, só existe uma maneira de sair do buraco: mudar o sistema de governo. Numa democracia, o fracasso pode ser superado mudando o governante, talvez o partido. É isso que se imagina, mas não é assim que a coisa funciona. Como a tendência democrática é o Centro – que não agrada a ninguém, mas desagrada menos a todos – troca-se sempre seis por meia dúzia. O dinheiro acompanha a troca, a meia dúzia vira seis e o bonde sempre volta  aos trilhos.
O maior problema do engodo da democracia, entretanto, não é o engodo em si. Todo engodo tem seu mérito. Enquanto a ilusão funciona, os enganados são felizes, ó pá! O verdadeiro problema do engodo democrático é o narcisismo que o acompanha. A democracia passa o dia admirando no espelho sua beleza e, na calada da noite, antes de dormir, decide que o mundo inteiro merece esse espetáculo. De repente, ela se transforma em direito humano, em sinônimo de liberdade. Tropeçando em mendigos e atravessando favelas pelo caminho, o democrata atravessa seu país natal e percorre o globo espalhando a boa nova: vamos derrubar ditadores!
Nunca antes na história desse mundão o maniqueísmo foi tão disseminado. Não importa se a ditadura é comunista, fascista ou nazista. Não importa se o autoritarismo é a razão de ser do regime e importa menos ainda quais as realizações econômicas e sociais de cada governo. Se o povo não vota, derrubemos os safados, libertemos os humildes – as exceções, claro, são os poucos regimes autoritários amigos e úteis, mas esses a gente deixa pra lá.
O resultado desse processo é a demonização pública de figuras políticas mundo afora, que se transforma em verdade incontestável pela repetição incansável da grande imprensa ocidental. Isso vale para o Zimbábue, país para o qual me mudarei em breve, e para muitos outros Estados semelhantes. Quase ninguém sabe coisa alguma sobre o Zimbábue. Poucos sabem qual a sua capital ou alguma coisa relevante de sua história. Ninguém tem ideia das atrações que oferece, de como sua população vive, dos problemas que assolam o país, das muitas origens desses problemas. Mas todo mundo sabe de uma coisa: Robert Mugabe é um ditador sanguinário que deve ser derrubado!
Depois de começar a estudar o país e de conversar com muita gente sobre ele (inclusive diplomatas de outros países africanos) tenho certeza de apenas uma coisa: a imagem criada pelo Ocidente é uma fantasia. Ainda não sei qual o tamanho da máscara, mas sei que o maniqueísmo democrático encontrou no Zimbábue um inimigo, um feioso que merece uma plástica, e decidiu despejar sobre ele sua fúria. A massificação da informação – e da “liberdade”  – levou essa verdade a todos os cantos do mundo livre e os felizes habitantes do Ocidente democrático já sabem a solução para a antiga Rodésia: derrubar o sacripanta!
Quando entrei para a carreira diplomática, o que mais me atraiu foi a possibilidade de ver o mundo de perto. Eu queria ver o mundo real, não os contos de fadas incrustados no “centro do planeta”. Achava, e ainda acho, que essa é a única maneira de compreender e avaliar a realidade e foi por isso que decidi ir viver no Zimbábue.  No mundo de hoje, um grande “Red Scare” repaginado e hegemônico, acredito que é aí que está a verdadeira liberdade. Estou muito feliz com a minha decisão.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O Último Carnaval?

Hoje eu deveria estar terminando de arrumar as malas. Acontece que minha partida para Harare, que deveria acontecer em 10 dias, foi atrasada em cerca de um mês e meio, para o dia 22 de abril.  Em vez de começar a escrever da África, então, vou ter que manter o blog vivo (ainda que respirando por aparelhos) com relatos mais que triviais sobre o Carnaval.
Pelo segundo ano consecutivo, fui para o Rio de Janeiro no feriadão. No ano passado, passei os dias perambulando pelos blocos, conhecendo um dos carnavais de rua mais impressionantes do Brasil. Este ano, além da farra dos bloquinhos, resolvi me aventurar também na Sapucaí, um território dividido harmonicamente entre gringos de todos os cantos e comunidades tipicamente cariocas. Devo dizer que me surpreendi!
Estive na Avenida em quatro noites diferentes. Em uma delas – a mais esperada! – desfilei na Mangueira, numa experiência emocionante e indescritível. A verdadeira surpresa, contudo, aconteceu nas outras três noites, quando fui à Sapucaí como mero espectador. Quem vê um desfile pela televisão não pode imaginar a emoção que se sente assistindo a tudo de perto, vendo a bateria passar e cantando os sambas com as Escolas – ainda que paulistanamente, pendurado nos livretinhos. Muito mais que um enlatado tupiniquim pra gringo ver, o desfile das escolas de samba é uma tradição nacional das mais originais e verdadeiras.
Claro que as experiências são sempre subjetivas e inexatas. Tenho certeza de que grande parte do meu apreço pelo último Carnaval deve-se à companhia dos muitos amigos brasilienses, paulistas e “cariocash” que dividiram comigo esses momentos. De qualquer forma, o melhor Carnaval que eu já tive não poderia ter vindo em melhor hora.
O resultado da farra? Uma resolução de ano novo atrasada: voltar todos os anos para aproveitar o Carnaval brasileiro. Sempre pensei numa forma de manter a ligação com o Brasil onde quer que eu estivesse, e agora estou convencido de que essa forma é a festança carnavalesca. Rio 2013, me aguarde!

domingo, 29 de janeiro de 2012

Apresentação

OK, eu tinha que abrir o blog com alguma coisa. Sem muitas ideias, decidi falar um pouco sobre mim e explicar o porquê da criação deste espaço.
Sou diplomata desde 2010. Ao contrário da maioria dos meus colegas, nunca tive o sonho de ser diplomata. Minha vontade MESMO era ser professor. Terminei a graduação e entrei no Mestrado. Terminei o Mestrado e percebi que a Academia é um caminho de muito sacrifício pra quem se dedica apenas a ela. Sim, sucumbi. Escolhi o caminho mais fácil.
Não quero parecer amargurado. Sou feliz com a minha profissão e acho que ela me permitirá conhecer lugares, povos e culturas de uma maneira diferente da Academia (“nem melhor, nem pior, apenas diferente!”, diria o poeta). Mesmo assim, ainda quero voltar ao meu habitat natural. Devo começar o Doutorado em breve e, quando voltar ao Brasil, me dividir entre o escritório e as salas de aula.
Digo voltar ao Brasil porque, no próximo dia 11 de março, parto em missão de dois anos para Harare, a capital do Zimbábue. Minha paixão pela África nasceu já como diplomata e, ao longo de 2011, a ideia de servir ali se tornou uma obsessão. A escolha do Zimbábue foi motivada por motivos pessoais – Harare ainda é uma capital relativamente desenvolvida – e profissionais – as próximas eleições devem ser históricas, pra dizer o mínimo. Foi dessa perspectiva de mudança de ares que surgiu a ideia de criar um blog.
Este não é meu primeiro blog e todos os outros naufragaram gloriosamente. Nenhum passou do segundo post. Por outro lado, nunca tive muito o que dizer e agora isso deve mudar. Quero aproveitar os dois próximos anos para conhecer o mundo de verdade e, se meu plano der certo, não faltarão histórias pra contar.
Nunca é demais lembrar: não escrevo como diplomata! Nenhuma das opiniões distorcidas e anacrônicas que eu venha a manifestar refletem, nem sequer tangencialmente, o pensamento do MRE.
É isso! Muito prazer e até breve.