quinta-feira, 15 de março de 2012

A Bela e a Fera

A democracia é um engodo! Essa afirmação se encaixa de forma especialmente azeitada na democracia liberal, que engoliu o Ocidente – que nunca deixou de existir, apesar da insistência dos ocidentais. De forma resumida, o engodo se dá pela criação de uma ilusão coletiva: transfere-se a responsabilidade do público para o privado, da sociedade para o indivíduo. Na democracia, os desmandos do Estado são personificados. Pensa-se a mudança sempre no nível micro.
Quando se vive sob uma “ditadura” (com toda a gama de regimes que essa palavrinha denota) mal sucedida, só existe uma maneira de sair do buraco: mudar o sistema de governo. Numa democracia, o fracasso pode ser superado mudando o governante, talvez o partido. É isso que se imagina, mas não é assim que a coisa funciona. Como a tendência democrática é o Centro – que não agrada a ninguém, mas desagrada menos a todos – troca-se sempre seis por meia dúzia. O dinheiro acompanha a troca, a meia dúzia vira seis e o bonde sempre volta  aos trilhos.
O maior problema do engodo da democracia, entretanto, não é o engodo em si. Todo engodo tem seu mérito. Enquanto a ilusão funciona, os enganados são felizes, ó pá! O verdadeiro problema do engodo democrático é o narcisismo que o acompanha. A democracia passa o dia admirando no espelho sua beleza e, na calada da noite, antes de dormir, decide que o mundo inteiro merece esse espetáculo. De repente, ela se transforma em direito humano, em sinônimo de liberdade. Tropeçando em mendigos e atravessando favelas pelo caminho, o democrata atravessa seu país natal e percorre o globo espalhando a boa nova: vamos derrubar ditadores!
Nunca antes na história desse mundão o maniqueísmo foi tão disseminado. Não importa se a ditadura é comunista, fascista ou nazista. Não importa se o autoritarismo é a razão de ser do regime e importa menos ainda quais as realizações econômicas e sociais de cada governo. Se o povo não vota, derrubemos os safados, libertemos os humildes – as exceções, claro, são os poucos regimes autoritários amigos e úteis, mas esses a gente deixa pra lá.
O resultado desse processo é a demonização pública de figuras políticas mundo afora, que se transforma em verdade incontestável pela repetição incansável da grande imprensa ocidental. Isso vale para o Zimbábue, país para o qual me mudarei em breve, e para muitos outros Estados semelhantes. Quase ninguém sabe coisa alguma sobre o Zimbábue. Poucos sabem qual a sua capital ou alguma coisa relevante de sua história. Ninguém tem ideia das atrações que oferece, de como sua população vive, dos problemas que assolam o país, das muitas origens desses problemas. Mas todo mundo sabe de uma coisa: Robert Mugabe é um ditador sanguinário que deve ser derrubado!
Depois de começar a estudar o país e de conversar com muita gente sobre ele (inclusive diplomatas de outros países africanos) tenho certeza de apenas uma coisa: a imagem criada pelo Ocidente é uma fantasia. Ainda não sei qual o tamanho da máscara, mas sei que o maniqueísmo democrático encontrou no Zimbábue um inimigo, um feioso que merece uma plástica, e decidiu despejar sobre ele sua fúria. A massificação da informação – e da “liberdade”  – levou essa verdade a todos os cantos do mundo livre e os felizes habitantes do Ocidente democrático já sabem a solução para a antiga Rodésia: derrubar o sacripanta!
Quando entrei para a carreira diplomática, o que mais me atraiu foi a possibilidade de ver o mundo de perto. Eu queria ver o mundo real, não os contos de fadas incrustados no “centro do planeta”. Achava, e ainda acho, que essa é a única maneira de compreender e avaliar a realidade e foi por isso que decidi ir viver no Zimbábue.  No mundo de hoje, um grande “Red Scare” repaginado e hegemônico, acredito que é aí que está a verdadeira liberdade. Estou muito feliz com a minha decisão.